Capítulo 4 A PARTÍCULA DELOCALIZADA E A LOCALIZADA

4.1 Introdução

Antes de tratarmos o assunto-título deste capítulo, vamos nos familiarizar com a equação de autovalor de um operador e com o princípio da superposição de ondas. Depois, agregaremos essas novas informações com os conceitos de probabilidade e incertezas para descrevermos o comportamento da partícula quântica totalmente localizada no espaço e da totalmente delocalizada.

4.2 A equação de autovalor

Em mecânica quântica, as grandezas físicas sujeitas à medição estão associadas a operadores matemáticos. Os operadores, por sua vez, operam sobre funções matemáticas alvos, instruindo que sejam realizadas algumas operações matemáticas específicas sobre essas funções. Por exemplo, a grandeza posição está associada ao operador da posição x^, e a grandeza momento linear associa-se ao operador do momento linear p^. O operador x^, instrui que a função alvo seja multiplicada por x, enquanto que p^, instrui que realizemos a derivada da função alvo em relação à posição e, depois, multipliquemos o resultado por i, em suma:

(4.1)x^=x.

(4.2)p^=iddx.

A medição de uma grandeza física, feita em certa experiência, resulta em uma quantidade numérica, mas vinculada à respectiva unidade da grandeza. Por exemplo, a medição da posição de uma partícula resulta em x (m); já a medição do momento em k (Jsm1). Aqui, o número de onda angular k está associado ao comprimento de onda λ, através da relação:

(4.3)k=2πλ.

Na teoria quântica, os resultados da medição de uma grandeza física que está associada a um operador A^, são os autovalores a que satisfazem a equação de autovalor:

(4.4)A^ψa=aψa.

Então, os resultados da medição da posição de uma partícula são os autovalores x (m) que satisfazem a equação:

(4.5)x^ψx=xψx.

Já os resultados da medição do momento da partícula são os autovalores k (Jsm1) que tornam verdadeira a equação:

(4.6)p^ψk=kψk.

Em (4.4), a solução ψa é chamada autoestado de A^, que corresponde ao autovalor a. Então em (4.5), a solução ψx é o autoestado de x^ correspondente ao autovalor x (m). Já em (4.6), a função ψk é o autoestado de p^ correspondente ao autovalor k (Jsm1).

Fica o desafio de resolvermos as equações (4.5) e (4.6)

4.3 O princípio da superposição

Um operador A^ pode formar um conjunto discreto de autofunções e de autovalores, do tipo:

(4.7)A^ψ1=a1ψ1A^ψ2=a2ψ2A^ψ3=a3ψ3

A base discreta de autoestados (ψ1,ψ2,ψ3,...), pode ser utilizada para decompor um estado quântico de uma partícula:

(4.8)Ψ(x)=b1ψ1(x)+b2ψ2(x)+b3ψ3(x)+...=ibiψi(x).

Dizemos, então, que Ψ(x) é constituído por uma superposição linear dos autoestados de A^. Os coeficientes bi são números complexos. Se forem efetuadas medições da grandeza física associada ao A^, a quantidade real bibi será a probabilidade do autovalor ai ser o resultado dessa medição; também é a probabilidade do autoestado ψi(x) ser o estado final dessa medição. A soma de todas as chances resulta em um, ou seja, i|bi|2=1.

Vamos encontrar a expressão do coeficiente b1:

Primeiro, multiplicamos o Ψ, da equação (4.8), pelo complexo conjugado de ψ1:

(4.9)ψ1Ψ=b1ψ1ψ1+b2ψ1ψ2+b3ψ1ψ3+...

Em seguida, efetuamos a integração da equação (4.9) em todo espaço das posições:

(4.10)+ψ1Ψdx=b1+ψ1ψ1dx++b2+ψ1ψ2dx++b3+ψ1ψ3dx+...

Neste ponto, precisamos lançar mão da ortogonalidade da base de autoestados:

(4.11)+ψ1ψ1dx=1+ψ1ψ2dx=0+ψ1ψ3dx=0

Por fim, aplicando (4.11) em (4.10), o coeficiente b1 resulta em:

(4.12)b1=+ψ1(x)Ψ(x)dx.

Analogamente, a expressão de certo coeficiente bi segue (4.12):

(4.13)bi=+ψi(x)Ψ(x)dx.

Em (4.7), falamos de um operador que formar uma base discreta de autoestados, ψi(x), com i=1,2,3.... Mas como proceder se certo operador formar uma base contínua de autoestados?

Vamos considerar o operador U^ formando uma base contínua de autoestados,ψu(x), sendo u um contínuo de reais, os autovalores desse operador. Seguindo o princípio da superposição em (4.8), a base contínua poderá ser utilizada para decompor um estado, mas, agora, ao invés de trabalharmos com somatórias, teremos que trabalhar com integrais:

(4.14)Ψ(x)=+b(u)ψu(x)du.

Também, fazendo comparação com o caso discreto, equação (4.13), o coeficiente da superposição será assim determinado:

(4.15)b(u)=+ψu(x)Ψ(x)dx.

Agora, a quantidade b(u)b(u) não será uma probabilidade genuína, mas terá significado de densidade de probabilidade. A probabilidade genuína será |b(u)|2du, interpretada como a probabilidade de um resultado do experimento estar entre os autovalores u+du. Desse modo, a probabilidade de um resultado do estar entre u1<u<u2, será:

(4.16)Pr(u1<u<u2)=u1u2|b(u)|2du.

Lembrando da [ seção 1.2 ], podemos interpretar b(u) como certa função de onda do espaço u, a qual gera certa densidade de probabilidade |b(u)|.

4.4 A delta de Dirac

Antes de avançarmos na física, estamos recordando um pouco da matemática. Já falamos da equação de autovalor [ seção 4.2 ] e do princípio da superposição [ seção 4.3 ]. Agora vamos recordar alguma coisa sobre a delta de Dirac, muito utilizada no desenvolvimento da teoria quântica.

A delta de Dirac, centrada em x=, é definida como:

(4.17)δ(x)=,sex=,=0,sex.

A Fig. 4.1 ilustra o perfil da δ-Dirac centrada em x=25; não é possível graficar o eixo y até o infinito, como exige (4.17), por isso devemos encarar a figura apenas como uma ilustração.

Ilustração de uma delta de Dirac centrada em $x=25$.

Figura 4.1: Ilustração de uma delta de Dirac centrada em x=25.

A δ-Dirac também pode ser representada no formato de integral de função exponencial:

(4.18)δ(kg)=12π+ei(kg)xdx.

Uma propriedade importante da δ-Dirac é chamada de filtragem-delta. Se F(x) for uma função contínua em torno da localização exata de uma delta de Dirac, então:

(4.19)+F(x)δ(x)dx=F().

Como se vê em (4.19), a delta de Dirac “percorre os valores da função e filtra apenas aquele que corresponde à localização exata dela.”

4.5 A partícula totalmente delocalizada

Vamos trabalhar a equação de autovalor do operador do momento linear [ seção 4.2 ]:

(4.20)p^ψk(x)=kψk(x).

Aplicando a instrução do operador do momento, ficamos com a seguinte equação diferencial:

(4.21)idψk(x)dx=kψk(x).

O subscrito k que aparece em (4.21), subendende que cada autoestado ψk está associado a um autovalor k (Jsm1), ademais, subentende que há um contínuo de autovalores k, ou seja, <k<+.

A solução da equação (4.21) é trivial:

(4.22)ψk(x)=Ceikx.

A constante C deve ser encontrada pelo processo de normalização:

(4.23)+|ψk(x)|2dx=+|C|2dx.

Mas a equação (4.23) produz um resultado divergente. Então vamos determinar C analisando a integral (4.24), com o auxílio da delta de Dirac na forma exponencial [ seção 4.4 ]:

(4.24)+ψk(x)ψg(x)dx=|C|2+ei(kg)xdx.=|C|22πδ(kg).

Justificamos a escolha |C|2=2π1 para a integral (4.24) valer um delta de Dirac. Finalmente temos (4.22) normalizada:

(4.25)ψk(x)=12πeikx.

Como dissemos, a quantidade de autoestados do momento é infinita, em (4.25), k pode percorrer de até +. Vamos limitar nossa discussão a uma partícula preparada em um autoestado do momento, que chamaremos de estado ΨD, possuindo um único k, por exemplo, k=g:

(4.26)ΨD(x)=12πeigx.

A partir de (4.26), podemos determinar a densidade de probabilidade da posição:

(4.27)|ΨD(x)|2=12π.

Para toda posição x, a densidade de probabilidade (4.27) é constante. Isso quer dizer que a chance de a partícula ser encontrada em um intervalo infinitesimal em torno de x=1, |ΨD(1)|2dx, é a mesma de ser encontrada em um intervalo infinitesimal em torno de x=2, |ΨD(2)|2dx, e a assim por diante. A partícula D, (4.26), tem posição totalmente incerta, Δx=. Dizemos que tal partícula está totalmente delocalizada – foi isso que motivou a escollha do subscrito D. Visto que Δx=, temos Δp=0, pelo princípio da incerteza [ seção 2.1 ]. Isso quer dizer que medições do momento sempre resultarão numa mesma medida, o autovalor g (Jsm1). Dizemos que a partícula está num estado de momento certo.

Portanto, o que concluímos desta seção é que a partícula D possui momento certo e posição totalmente incerta.

4.6 A partícula totalmente localizada

Nosso objetivo agora é lidar com a equação de autovalor [ seção 4.2 ] do operador da posição [ x^ ]:

(4.28)x^ψx(x)=xψx(x).

Exclarecimento sobre a notação: em (4.28), x é coordenada (x), mas x também é autovalor de x^. Para fazer distinção, x continuará sendo coordenada (x), mas passará a fazer o papel de autovalor de x^. Com este exclarecimento, a equação (4.28) muda para a forma:

(4.29)x^ψ(x)=ψ(x).

A solução da equação (4.29) pode ser deduzida a partir da filtragem-delta [ seção 4.4 ], pois:

(4.30)F(x)δ(x)=F()δ(x).

No nosso caso F(x)=x, então, a equação (4.30) tem a forma:

(4.31)xδ(x)=δ(x).

Vejam a semelhança entre as equações (4.29) e (4.31). Por isso concluímos que ψ é um delta de Dirac centrado em x=, ou seja:

(4.32)ψ(x)=δ(x).

O subscrito subentende um contínuo de autovalores, onde cada autovalor (m) associa-se ao seu autoestado ψ.

Como acabamos de dizer, a quantidade de autoestados da posição é infinita, em (4.32), pode percorrer de até +. Vamos limitar nossa discussão a uma partícula preparada em um único autoestado da posição, possuindo um único autovalor :

(4.33)ΨL(x)=δ(x).

A partir de (4.33), podemos determinar a densidade de probabilidade da posição:

(4.34)|ΨL(x)|2=|δ(x)|2.

Levando em conta a definição da delta de Dirac [ seção 4.4 ], a equação (4.34) produz dois resultados:

(4.35)|ΨL(x)|2=,sex=,=0,sex.

Como se vê, não há chance da partícula L, (4.33), ser encontrada fora da posição x=. Como era de se esperar, esta partícula só poderá ser achada em x=. Dizemos que esta partícula está num estado de posição certa, totalmente localizada – aqui está o porquê do subscrito L. Sua incerteza na posição é zero, Δx=0. Visto que Δx=0, temos Δp=, pelo princípio da incerteza [ seção 2.1 ]. Isso quer dizer que medições do momento poderão resultar em qualquer medida dentre os autovalores <k<+.

Portanto, o que concluímos desta seção é que a partícula L possui posição certa e momento totalmente incerto; ver o contraste com a partícula D [ seção 4.5 ].

4.7 Mais sobre a partícula totalmente delocalizada

Na [ seção 4.5 ], batizamos a partícula totalmente delocalizada de partícula D:

(4.36)ΨD(x)=12πeigx.

Entendemos que sua densidade de probabilidade da posição é constante:

(4.37)|ΨD(x)|2=12π.

Entendemos, também, que seu momento é único, k=g, mas que sua posição é totalmente incerta. Vamos explorar este fato. Por ter posição totalmente incerta, a partícula D está numa superposição [ seção 4.3 ] de autoestados [ δ(x) ] do operador posição [ x^ ], simultaneamente centrada em todos autovalores :

(4.38)ΨD(x)=+bD()δ(x)d.

Temos que x^ forma uma base contínua de autoestados. Foi mencionado na mesma [ seção 4.3 ], que para uma base contínua, o coeficiente da superposição pode ser assim determinado:

(4.39)bD()=+δ(x)ΨD(x)dx.

Substituindo (4.36) em (4.39), temos:

(4.40)bD()=12π+δ(x)eigxdx.

A integral (4.40) pode ser facilmente resolvida pela técnica da filtragem-delta [ seção 4.4 ], se percebemos que F(x)=eigx:

(4.41)bD()=12πeig.

Para qualquer , <<+, a densidade de probabilidade gerada por (4.41) é constante:

(4.42)|bD()|2=12π.

Isso significa que a chance da partícula D ser encontrada com autovalor 1 é igual à chance de ser encontrada com autovalor 2, e assim por diante.

Em (4.38), a partícula D foi colocada na base do operador x^. E se ela fosse colocada na base operador p^? Os autoestados de p^ foram deduzidos na [ seção 4.5 ], com eles podemos escrever a superposição:

(4.43)ΨD(x)=+bD(k)12πeikxdk.

A base p^ também é contínua, logo:

(4.44)bD(k)=+12πeikxΨD(x)dx.

Substituindo (4.36) em (4.44):

(4.45)bD(k)=+12πeikx12πeigxdx.

Vamos deixar (4.45) com aparência de delta de Dirac:

(4.46)bD(k)=12π+ei(kg)xdx.

Não há dúvida que (4.46) é a delta de Dirac na forma exponencial [ seção 4.4 ], assim:

(4.47)bD(k)=δ(kg).

Então, no espaço do momento, há dois resultados possíveis para a densidade de probabilidade:

(4.48)|bD(k)|2=,sek=g,=0,sekg.

Como se vê, as chances da partícula D ser encontrada com momento kg são nulas. Como era de se esperar, esta partícula D possui um único momento, k=g.

As Figs. 4.2 e 4.3 apresentam as densidades de probabilidade do momento e da posição, respectivamente, os gráficos das equações (4.48) e (4.37), para a partícula partícula D preparada com momento k=50 (Jsm1). Essas figuras reforçam a conclusão da [ seção 4.5 ]: a partícula D possui momento certo e posição totalmente incerta.

Nota: para facilitar a visualização, fixamos =1 (Js).

Partícula ${\rm D}$ com momento $k=50$. A densidade de probabilidade do momento é delta de Dirac.

Figura 4.2: Partícula D com momento k=50. A densidade de probabilidade do momento é delta de Dirac.

A mesma partícula ${\rm D}$, com momento $k=50$. A densidade de probabilidade da _posição_ é constante.

Figura 4.3: A mesma partícula D, com momento k=50. A densidade de probabilidade da posição é constante.

4.8 Mais sobre a partícula totalmente localizada

Chegou a hora de falarmos mais um pouco sobre a partícula totalmente localizada, batizada na [ seção 4.6 ] de partícula L. Por ser delta de Dirac, entendemos que sua densidade de probabilidade também tem características de δ-Dirac:

(4.49)ΨL(x)=δ(x).|ΨL(x)|2=,sex=,=0,sex.

Apesar de sua posição ser certa, seu momento é totalmente incerto. Isso significa que a partícula L está numa superposição de autoestados de p^, conforme a expressão:

(4.50)ΨL(x)=+bL(k)12πeikxdk.

Onde o coeficiente da superposição é determinado por:

(4.51)bL(k)=+12πeikxΨL(x)dx;=12π+eikxδ(x)dx.

A integral (4.51) pode ser facilmente resolvida pela técnica da filtragem-delta [ seção 4.4 ], se percebemos que F(x)=eikx:

(4.52)bL(k)=12πeik.

Para qualquer k, <k<+, a densidade de probabilidade gerada por (4.52) é constante:

(4.53)|bL(k)|2=12π.

Isso significa que a chance da partícula L ser encontrada com momento k1 é igual à chance de se encontrada com momento k2, e assim por diante.

As Figs. 4.4 e 4.5 apresentam as densidades de probabilidade da posição e do momento, respectivamente, os gráficos das equações (4.49) e (4.53), para a partícula partícula L preparada na posição x=50 (m). Já essas figuras reforçam a conclusão da [ seção 4.6 ]: a partícula L possui posição certa e momento totalmente incerto.

Partícula ${\rm D}$ na posição $x=50$. A densidade de probabilidade da posição é delta de Dirac.

Figura 4.4: Partícula D na posição x=50. A densidade de probabilidade da posição é delta de Dirac.

A mesma partícula ${\rm D}$, na posição $x=50$. A densidade de probabilidade do momento é constante.

Figura 4.5: A mesma partícula D, na posição x=50. A densidade de probabilidade do momento é constante.