Capítulo 8 A BARREIRA RETANGULAR
8.1 Introdução
A barreira retangular de potencial é caracterizada por ser descontinua em 2 pontos do espaço. Escolhemos a descontinuidade na origem e em :
Aqui, é uma grandeza positiva. Visualizamos a barreira retangular na Fig. 8.1.

Figura 8.1: A barreira retangular de potencial.
Comparando com o degrau, que se se estende por todo semi-eixo positivo [ seção 7.1 ], a barreira atua somente em certa região do espaço. Os efeitos quânticos por ela manifestados, dependem da energia da partícula incidente. Na [ seção 8.2 ], estudaremos o caso da energia da partícula ser menor que a altura da bareira. Já na [ seção 8.3 ], trataremos o caso de ser maior que .
8.2 O regime de baixa energia
O regime de baixa energia é caracterizado por . A barreira divide o espaço em três regiões. Há a região de dentro () e as regiões de fora () da barreira. Em cada região, a solução da equação de Schrödinger apresenta uma peculiar expressão:
Em cada região, o número de onda também apresenta uma peculiar expressão:
Por causa de , o número de onda dentro da barreira é imaginário. É favorável escrevê-lo na forma: , onde é um número real e positivo:
Após a transmissão através da barreira, não há motivos para a onda ser refletida, então podemos ajustar . Ademais, substituindo (8.4) em (8.2), a solução da barreira retangular se escreve:
Explorando (8.5), a onda de matéria incidente pode aparecer do outro lado da barreira, na forma da onda transmitida , ou aparecer na frente da barreira, na forma da onda refletida . Já dentro da barreira, ocorre certa “competição” entre as exponenciais reais e .
O módulo de , ao quadrado, é a probabilidade por unidade de comprimento que a partícula incidente “carrega” em direção à barreira. Analogamente, o módulo de , ao quadrado, é a probabilidade que a partícula transmitida “carrega” em direção ao infinito. Por causa da barreira, que dificulta a transmissão de probabilidades, nunca será maior que . O valor máximo que se pode atingir é . Então, para analisarmos a transmissão por uma barreira é útil estudarmos o comportamento da razão:
A razão (8.6) é adimensional e exprime a probabilidade de transmissão da partícula através da barreira. Ela é chamada de coeficiente de transmissão. Nosso trabalho agora será encontrar a expressão desse coeficiente. Podemos começar reescrevendo (8.6) na forma:
Segundo (8.7), nossa busca se resume em encontrar a expressão de . Para isso, podemos estabelecer as ligações entre as constantes complexas, , , , , e , por se valer das condições de continuidade da função de onda nas interfaces da barreira:
Resolvendo (8.8) e (8.9), encontramos:
Vamos trabalhar (8.11) duas vezes:
Ao subtrair as equações, encontramos em função de :
Ao somar as equações, encontramos em função de :
Agora, eliminando o das equações (8.10), encontramos uma relação muito útil, que vai nos auxiliar a atingir nosso objetivo:
Substituindo (8.12) e (8.13) em (8.14), encontramos:
Pela primeira vez temos algo que relaciona A com F:
Resolvendo os termos quadráticos de (8.16) e, em seguida, agrupando as exponenciais reais:
Identificamos as relações trigonométricas:
Substituindo (8.18) em (8.17), temos a relação que procurávamos:
Para encontrar o coeficiente de transmissão, há necessidade de fazer o complexo conjugado de (8.19):
Enfim, podemos determinar (8.7) através das relações (8.19) e (8.20):
Lembrando que :
Resolvendo os colchetes, chegamos à expressão final do coeficiente de transmissão para o caso do regime de aixa energia:
8.3 O regime de alta energia
O regime de alta energia é caracterizado por . Seguindo a nomenclatura da [ seção 8.2 ], a solução da equação de Schrödinger por toda extensão da barreira retangular é:
Em cada região, o número de onda também apresenta uma peculiar expressão:
Nosso objetivo aqui também é determinar o coeficiente de transmissão. Começamos aplicando as condições de continuidade das funções de onda nas interfaces da barreira:
Ao compararmos as equações (8.26) e (8.27) com as correspondentes da [ seção 8.2 ], fica evidente que a única diferença entre elas é a permuta:
Assim, a única coisa a fazer é fazer a permuta (8.28) na expressão final do coeficiente de transmissão deduzido na [ seção 8.2 ]:
Cabe a recordação:
Substituindo (8.31) em (8.30), chegamoas à expressão final do coeficiente de transmissão para o caso do regime de lta energia:
8.4 Um exemplo numérico
Estamos com as ferramentas preparadas para estudar a transmissão em barreiras de potencial. Analisaremos um elétron incidindo em uma barreira de altura e espessura . Tomando como base a altura da barreira, dividimos a energia do elétron em dois intervalos: [ , seção 8.2 ] e [ , seção 8.3 ]. A Fig. 8.2 apresenta os gráficos dos coeficientes de transmissão e .

Figura 8.2: A transmissão por uma barreira retangular de potencial.
A Fig. 8.2 mostra alguns pontos em destaque. Existem energias especiais que proporcionam , quer dizer, há 100% de chance da partícula ser transmitida através da barreira. A partícula “chega, e passa.” Isso ocorre nas energias , e . Vendo por outro ângulo, quer dizer que não há chance da partíula sofrer reflexão nas interfaces da barreira. Investigando a expressão do coeficiente de transmissão no regime de alta energia, a condição para é , ou seja:
Dentro da barreira, o número de onda é [ seção 8.3 ]:
Substituindo (8.33) em (8.34), encontramos a expressão das energias que geram 100% de transmissão:
As energias que condicionam transmissão máxima são chamadas de energias de ressonância da barreira. Nossa dedução mostra que a energia de ressonância é quantizada. Além disso, mostra que o termo que quantiza a expressão é idêntico à energia de confinamento de um poço retangular infinito, de largura igual à largura da barreira [ver seção 6.2 ].
Observando mais um pouco a Fig. 8.2, percebemos que muitas energias geram . Por exemplo, gera . Se há de chance da partícula ser transmitida através da barreira, também há dela ser refletida! Isso viola a visão clássica sobre o problema, que afirma que uma partícula tendo energia maior que uma barreira não poderia ser refletida por ela. De fato, na mecânica quântica:
Onde é o coeficiente de reflexão.
A análise do regime de baixa energia, início da curva da Fig. 8.2, mostra que esse regime produz grande reflexão. Por exemplo, gera , o que implica em . Se compararmos as probabilidades, agora a partícula tem mais chance de ser refletida do que transmitida. Mas ainda existe certa chance, mesmo que pequena, da partícula ser transmitida! Esse fato puramente quântico também abala a visão clássica do problema, que afirma que uma partícula com energia menor que uma barreira não poderia transpor esse potencial.
8.5 O tunelamento
A transmissão quântica por barreiras, quando a energia da partícula é menor que a energia potencial da barreira, é chamada de tunelamento. Dentro da barreira, ocorre interferência da onda , que caminha em direção à segunda interface , com a onda , que é refletida por essa interface. Mas, visto que o número de onda dessas ondas é imaginário, as exponenciais complexas se transformam em exponenciais reais.
Quando a interferência é pouco influenciada pela onda refletida, podemos modificar a expressão do coeficiente de transmissão , analisando algumas passagens da [ seção 8.2 ].
O que significa, em termos probabilísticos, a onda ser pouco influente? Quer dizer que ela carrega pouca probabilidade em relação à onda . Nesse sentido, podemos considerar que:
Na [ seção 8.2 ], deduzimos as expressões das grandezas e . Aqui determinamos:
Logo,
A condição (8.37) é seguramente satisfeita se . O que nos leva a seguinte aproximação:
Vamos utilizar (8.40) para encontrar um valor aproximado de :
Como , o número “” que aparece em (8.42) pode ser desprezado, logo:
Na próxima [ seção 8.6 ], vamos usar (8.43) para entender o funcionamento do Microscópio de Varredura por Tunelamento.
8.6 O STM
STM é a sigla de Scanning Tunneling Microscopy, Microscópio de Varredura por Tunelamento.
O STM se alicerça no fenômeno quântico do tunelamento. Quando a ponta metálica de um STM se aproxima de um material condutor (metal ou semicondutor dopado), entre a ponta e o condutor se forma uma barreira de potencia , de largura , igual à distância entre a ponta e o condutor. Pelo efeito de tunelamento, elétrons da ponta têm probabilidade de se transferirem para o condutor. A topografia da superfície do condutor pode ser mapeada fazendo a ponta do STM se movimentar sobre o condutor. Há dois modos de operação: o modo de altura constante e o modo de corrente constante. A Fig. 8.3 apresenta os detalhes desses modos de operação.

Figura 8.3: Os modos de operação de um STM.
No modo de altura constante, cada ponto sobre o condutor, de posição , forma uma barreira de largura , sendo . Para cada , há uma probabilidade de tunelamento . Conforme vimos na [ seção 8.5 ], . Se há elétrons livres na ponta do microscópio, a quantidade fará parte da corrente de tunelamento , ou seja, . Portanto, o STM vai registrar uma corrente de tunelamento diferente para cada ponto investigado. Ao traçar a corrente em função da posição da ponta sobre o condutor , teremos a imagem da superfície do material.
No modo de corrente constante, o registro é feito no deslocamento vertical da ponta do microscópio, indicado por na Fig. 8.3. No primeiro ponto em estudo, ajustamos a corrente base do processo: . Sabemos que a próxima corrente , depende de , que por sua vez, depende de . Ao fazer a varredura, podemos, então, ajustar para ter o mesmo valor da corrente base . Como fazemos isso? Liberando a ponta do microscópio para se movimentar na vertical. Portanto, o STM vai registrar um deslocamento vertical para cada ponto investigado. Ao desenhar em função de , veremos a imagem da superfície do material.
8.7 O fluxo de probabilidade pela barreira
Antes de avançar, seria importante recordar a nomenclatura utilizada para caracterizar a barreira retangular [ ver seção 8.2 ]. Como dissemos, a onda de matéria incidente pode aparecer do outro lado da barreira, na forma da onda transmitida , ou aparecer na frente da barreira, na forma da onda refletida .
A densidade de probabilidade do estado incidente , a grandeza , significa probabilidade por unidade de comprimento. Ela pode ser transformada em probabilidade por unidade de tempo, que chamaremos de fluxo de probabilidade . Para fazer a transformação, precisamos levar em conta a velocidade com que o estado avança em direção à barreira:
A transformação ocorre se definirmos:
Lembrando que velocidade tem dimensão dada por comprimentotempo, fica claro que (8.45) tem dimensão de probabilidadetempo.
Vamos então listar todos fluxos de probabilidade que ocorrem na barreira retangular:
Já falamos do fluxo de probabilidade incidente (8.46), mas também existe o fluxo de probabilidade refletica (8.47) e o fluxo de probabilidade transmitida (8.48). Fica claro que o fluxo total de entrada e o fluxo total de saída , são:
Nesse novo alicerce teórico, o coeficiente de transmissão é definido como:
Substituindo (8.46) e (8.48) em (8.51), recuperamos o argumento usado na [ seção 8.2 ], quando dissemos que:
Assim como definimos o coeficiente (8.51), podemos definir o coeficiente de reflexão:
Nota: Como o valor de (8.47) é negativo, há necessidade da inclusão do sinal , para fazer ser uma grandeza positiva.
Aqui vale ressaltar que .
Agora, substituindo (8.53) em (8.49), e (8.51) em (8.50), encontramos:
Portanto, o fluxo total pela barreira é constante: .
8.8 A origem do fluxo de probabilidade
Na [ seção 8.7 ], introduzimos a ideia de fluxo de probabilidade. Não nos preocupamos sobre sua origem. Agora vamos desenvolver a fórmulação que dá origem a esse fluxo.
Começamos multiplicando a equação de Schrödinger, equação (8.56), pelo complexo conjugado da função de onda:
Em seguida, multiplicamos o complexo conjugado da equação de Schrödinger, equação (8.58), pela função de onda:
Por fim, subtraímos os resultados (8.57) e (8.59):
Usando da matemática, os parênteses de (8.60) são:
Utilizando (8.61) e (8.62) em (8.60), temos:
Observa-se que (8.63) relaciona a densidade de probabilidade, , com o fluxo de probabilidade, , onde:
Logo, (8.63) pode ser escrita na forma compacta:
A densidade de probabilidade e o fluxo de probabilidade estão interligados através da conhecida equação da continuidade, que surge no contexto da mecânica dos fluidos e também na eletrodinâmica clássica. Na mecânica dos fluidos, ela atesta em última análise a conservação da massa, e na eletrodinâmica, a conservação da carga. No presente contexto da mecânica quântica, ela reflete a conservação da probabilidade. Para entender melhor essa ideia, vamos fazer um jogo de palavras com as palavras probabilidade e elétrons:
“Num dado instante, e em num dado local, se o fluxo de entrada de elétrons for maior que o fluxo de saída, , aumenta a concentração de elétrons desse local, , mas, se o fluxo de entrada for igual ao fluxo de saída, , a concentração de elétrons não se altera, .”
Vamos calcular o fluxo de probabilidade do estado incidente :
Utilizando a definição (8.65) em (8.67), encontramos:
O fluxo não depende da posição, . Assim, a aquação de continuidade (8.66) implica em , quer dizer, a densidade de probabilidade é constante. De fato, .
Nota: A barreira que estamos usando como ilustração é unidimensional. Assim, é probabilidade por comprimento. Isso leva a ser probabilidade por tempo. Porém, se o sistema fosse tridimensional, seria probabilidade por comprimento. O que, por sua vez, levaria a ser probabilidade por (tempo comprimento).
8.9 A normalização do inormalizável
Nem sei se a palavra inormalizável será ou não incorporada aos dicionários. Mas sei que algumas funções de onda da mecânica quântica trazem em si o conceito de aquilo que se não consegue normalizar. É o caso das ondas que caminham fora da barreira retangular [ seção 8.2 ], por exemplo, a onda incidente é representada por:
A normalização da função de onda (8.69) resulta em:
Tais funções são características de estados não-ligados. Se uma função de onda representa um estado ligado, como as funções de onda do poço retangular infinito [ ver seção 6.2 ], então, quando fazemos a normalização, o resultado é finito.
Apesar da integral (8.70) divergir, ela é bem definida quando realizada em uma porção finita do espaço. Por exemplo, podemos fazer a integral considerando apenas certo comprimento , localizado na frente da barreira:
Se chamarmos, o total de partículas em de , então,
será a densidade de partículas incidentes, e, nesse caso:
Contornamos o problema da inormalização. Agora somos capazes de dar condições de normalização ao problema dos estados não-ligados. Olhando para (8.73), se optarmos que a amplitude da onda incidente seja real, teremos , daí:
Na [ seção 8.7 ], deduzimos que e , agora, com a dedução (8.73), podemos escrever:
Portanto, ao definir que é igual a densidade de partículas incidentes, se torna igual à densidade de partículas refletidas, conforme (8.75), e se torna igual à densidade de partículas transmitidas, segundo (8.76)
Ademais, como não há criadouro ou sumidouro de partículas:
Trabalhar com grandezas ligadas à partícula parece mais intuitivo do que ligadas à probabilidade. De fato, para uma barreira exposta a um feixe de partículas incidentes , podemos usar a intuição e reescrever os fluxos de probabilidade, desenvolvidos na [ seção 8.7 ], em termos de fluxos de partículas:
Ademais, também podemos reescrever os coeficientes de transmissão e de reflexão: